1. Introdução
Muitos
advogados que não militam na área pública cometem imprecisões técnicas quando
aceitam, muitas vezes, litigar em face do poder público. Uma destas imprecisões
é quando litigam em face do município e colocam a “Prefeitura” no polo passivo
da relação jurídico processual.
Apenas
a título de lembrança, a relação jurídico-processual é uma relação trilateral (ou triangular), porquanto entretecida entre o
juiz e as partes e entre o réu e o autor, reciprocamente, e um erro na configuração
desta trilateralidade, configura ausência de pressuposto processual de validade
ou desenvolvimento válido do processo.
Por isso os advogados que atuam nos municípios não
perdoam, e buscam através de preliminares a extinção do processo sem análise do
mérito.
Os argumentos normalmente são de que Prefeitura é
órgão e não tem personalidade jurídica.
2. Teoria do
Órgão – Prefeitura é órgão
Prefeitura,
ensina Hely Lopes Meirelles:
"É o órgão executivo do Município. Órgão
independente, composto, central e unipessoal (...). Como órgão público, a
Prefeitura não é pessoa jurídica; é simplesmente a unidade central da
estrutura administrativa do Município. Nem representa juridicamente o
Município, pois nenhum órgão representa a pessoa jurídica a que pertence, a
qual só é representada pelo agente (pessoa física) legalmente investido dessa
função que, no caso, é o prefeito. Daí
a impropriedade de tomar-se a Prefeitura pelo Município, o que equivale a
aceitar-se a parte pelo todo, ou seja, o órgão, despersonalizado, pelo ente,
personalizado (...). Nas relações externas e em juízo, entretanto, quem responde civilmente não é a Prefeitura, mas sim o Município, ou seja, a Fazenda
Pública Municipal, única com capacidade jurídica e legitimidade processual
para demandar e ser demandada, auferindo as vantagens de vencedora e suportando
os ônus de vencida no pleito." (grifou-se)
Adota
o clássico autor, às claras, a Teoria do Órgão. Por esta, em linhas gerais, as
pessoas jurídicas emanam sua vontade por seus órgãos, titularizados por seus
agentes, na forma de sua organização interna. O órgão, do famoso ponto de vista
de Gierke, é "parte do corpo da entidade e, assim, todas as suas
manifestações de vontade são consideradas como da própria entidade." Tal
teoria transporta para o campo do Direito Administrativo o próprio corpo
humano: órgão é coração, é rim, é pulmão. O corpo é o todo. A manifestação do
amor, pelo coração (órgão) e declarado pela boca (órgão) é manifestação do
corpo (todo).
Órgãos,
pois, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, "não
passam de simples partições internas da pessoa cuja intimidade estrutural
integram, isto é, não têm personalidade jurídica."
Possuindo
tal natureza jurídica de parte integrante de um todo, a Prefeitura sequer poderia ter aptidão processual para representar
judicialmente o Município. Quando muito, conforme diz Pontes de
Miranda, o órgão "presenta" o ente federativo (no caso, o Município),
no sentido de "estar presente para dar presença à entidade de que é órgão
(...); onde não se trata de órgão, caberia empregar a palavra
''representação'', ''representar'', ''representante'', ''representado'', não
porém onde a participação processual ativa ou passiva, é de órgão."
(grifou-se). Concertando deste mesmo entendimento, vêm Ovídio A. Batista da
Silva e Fábio Gomes dizer:
"Os
órgãos das pessoas jurídicas – diz muito bem Pontes de Miranda – são partes de
seu ser, portanto, não as representam. A lei constitutiva da pessoa jurídica em
causa, seja ela de direito público ou de direito privado, dirá quem a deve presentar,
torná-la presente (não representá-la) em juízo."
(grifos originais)
O
Município é que, sendo pessoa (CC, 41, III), possui personalidade jurídica
própria, ao contrário de seus órgãos.
3. Reflexos Processuais
Demonstrada a diferença marcante
entre as naturezas jurídicas dos dois institutos, disso extrai-se os reflexos
para a seara processual de modo que, se a ação foi ajuizada em face do
"órgão" e não em face do Município, configura-se erro grave na delimitação
do pólo passivo, pois como já citado, nas lições de Hely Lopes Meirelles
"no rigor jurídico, esses vocábulos têm sentido diverso: Município é
pessoa jurídica; Prefeitura é órgão e Prefeito é agente."
Portanto,
ajuizada ação em face da Prefeitura, tem-se que foi ajuizada em face de órgão.
Desta
forma, nos termos do artigo 267, §3º, 2ª parte do CPC, ocorre no caso em tela a
falta de pressuposto processual de
validade ou desenvolvimento válido, com supedâneo nos arts.
267, IV e §3º c/c 301, X, todos do Código Processual Civil.
É
o que, aliás, confirmam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, para
os quais "a capacidade das
partes e a regularidade de sua representação judicial são pressupostos
processuais de validade. A falta desses pressupostos acarreta a extinção do
processo sem julgamento do mérito."
É,
bem por isso, que o legislador processual fez plasmar no art. 12, II do Código
de Processo Civil a quem competiria representar o Município ativa e passivamente (o Prefeito e seus Procuradores).
Não permitiu que o fizesse o órgão.
A norma que daí se extrai é imperativa e, pois, de interpretação restrita.
Admitir-se o contrário seria o mesmo que se ter o coração representando toda
uma pessoa humana, isto é, tomar-se a parte pelo todo, o que, data venia,
não encontra agasalho jurídico.
Assim,
apontado a falta de pressupostos processuais de validade, os
quais, uma vez inobservados, levam o feito a ser extinto sem perquirição acerca
do mérito (CPC, 267, IV).