quinta-feira, 22 de março de 2012

PREFEITURA NÃO TEM APTIDÃO PROCESSUAL PARA REPRESENTAR JUDICIALMENTE O MUNICÍPIO, por Geovani da Rocha Gonçalves


1. Introdução

Muitos advogados que não militam na área pública cometem imprecisões técnicas quando aceitam, muitas vezes, litigar em face do poder público. Uma destas imprecisões é quando litigam em face do município e colocam a “Prefeitura” no polo passivo da relação jurídico processual.
Apenas a título de lembrança, a relação jurídico-processual é uma relação trilateral (ou triangular), porquanto entretecida entre o juiz e as partes e entre o réu e o autor, reciprocamente, e um erro na configuração desta trilateralidade, configura ausência de pressuposto processual de validade ou desenvolvimento válido do processo.
Por isso os advogados que atuam nos municípios não perdoam, e buscam através de preliminares a extinção do processo sem análise do mérito.
Os argumentos normalmente são de que Prefeitura é órgão e não tem personalidade jurídica.

2. Teoria do Órgão – Prefeitura é órgão

Prefeitura, ensina Hely Lopes Meirelles[1]:

 "É o órgão executivo do Município. Órgão independente, composto, central e unipessoal (...). Como órgão público, a Prefeitura não é pessoa jurídica; é simplesmente a unidade central da estrutura administrativa do Município. Nem representa juridicamente o Município, pois nenhum órgão representa a pessoa jurídica a que pertence, a qual só é representada pelo agente (pessoa física) legalmente investido dessa função que, no caso, é o prefeito. Daí a impropriedade de tomar-se a Prefeitura pelo Município, o que equivale a aceitar-se a parte pelo todo, ou seja, o órgão, despersonalizado, pelo ente, personalizado (...). Nas relações externas e em juízo, entretanto, quem responde civilmente não é a Prefeitura, mas sim o Município, ou seja, a Fazenda Pública Municipal, única com capacidade jurídica e legitimidade processual para demandar e ser demandada, auferindo as vantagens de vencedora e suportando os ônus de vencida no pleito." (grifou-se)

Adota o clássico autor, às claras, a Teoria do Órgão. Por esta, em linhas gerais, as pessoas jurídicas emanam sua vontade por seus órgãos, titularizados por seus agentes, na forma de sua organização interna. O órgão, do famoso ponto de vista de Gierke, é "parte do corpo da entidade e, assim, todas as suas manifestações de vontade são consideradas como da própria entidade." Tal teoria transporta para o campo do Direito Administrativo o próprio corpo humano: órgão é coração, é rim, é pulmão. O corpo é o todo. A manifestação do amor, pelo coração (órgão) e declarado pela boca (órgão) é manifestação do corpo (todo).
Órgãos, pois, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, "não passam de simples partições internas da pessoa cuja intimidade estrutural integram, isto é, não têm personalidade jurídica."[2]
Possuindo tal natureza jurídica de parte integrante de um todo, a Prefeitura sequer poderia ter aptidão processual para representar judicialmente o Município. Quando muito, conforme diz Pontes de Miranda, o órgão "presenta" o ente federativo (no caso, o Município), no sentido de "estar presente para dar presença à entidade de que é órgão (...); onde não se trata de órgão, caberia empregar a palavra ''representação'', ''representar'', ''representante'', ''representado'', não porém onde a participação processual ativa ou passiva, é de órgão."[3] (grifou-se). Concertando deste mesmo entendimento, vêm Ovídio A. Batista da Silva e Fábio Gomes dizer:

"Os órgãos das pessoas jurídicas – diz muito bem Pontes de Miranda – são partes de seu ser, portanto, não as representam. A lei constitutiva da pessoa jurídica em causa, seja ela de direito público ou de direito privado, dirá quem a deve presentar, torná-la presente (não representá-la) em juízo."[4] (grifos originais)
O Município é que, sendo pessoa (CC, 41, III), possui personalidade jurídica própria, ao contrário de seus órgãos.

3. Reflexos Processuais
Demonstrada a diferença marcante entre as naturezas jurídicas dos dois institutos, disso extrai-se os reflexos para a seara processual de modo que, se a ação foi ajuizada em face do "órgão" e não em face do Município, configura-se erro grave na delimitação do pólo passivo, pois como já citado, nas lições de Hely Lopes Meirelles "no rigor jurídico, esses vocábulos têm sentido diverso: Município é pessoa jurídica; Prefeitura é órgão e Prefeito é agente."[5]
Portanto, ajuizada ação em face da Prefeitura, tem-se que foi ajuizada em face de órgão.
Desta forma, nos termos do artigo 267, §3º, 2ª parte do CPC, ocorre no caso em tela a falta de pressuposto processual de validade ou desenvolvimento válido, com supedâneo nos arts. 267, IV e §3º c/c 301, X, todos do Código Processual Civil.
É o que, aliás, confirmam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, para os quais "a capacidade das partes e a regularidade de sua representação judicial são pressupostos processuais de validade. A falta desses pressupostos acarreta a extinção do processo sem julgamento do mérito." [6]
É, bem por isso, que o legislador processual fez plasmar no art. 12, II do Código de Processo Civil a quem competiria representar o Município ativa e passivamente (o Prefeito e seus Procuradores). Não permitiu que o fizesse o órgão. A norma que daí se extrai é imperativa e, pois, de interpretação restrita. Admitir-se o contrário seria o mesmo que se ter o coração representando toda uma pessoa humana, isto é, tomar-se a parte pelo todo, o que, data venia, não encontra agasalho jurídico.
Assim, apontado a falta de pressupostos processuais de validade, os quais, uma vez inobservados, levam o feito a ser extinto sem perquirição acerca do mérito (CPC, 267, IV).




[1] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 6ª ed.. São Paulo: Malheiros, 1993, pp. 518 e 520.

[2] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed.. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 130
[3] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. 5ª ed.. Tomo I. Atualizado por Sérgio Bermudes. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 288
[4] SILVA, Ovídio A. Baptista da e GOMES, Fábio. Teoria Geral do Processo Civil. 3ª ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 141.
[5] MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção, "Habeas data", Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade e Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. 25ª ed.. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 58, nota nº 7
[6] NERY, Nelson Nery Junior e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. 6ª ed.. São Paulo, RT, 2002.

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